RESUMO
Nas últimas décadas, com o aumento considerável do consumo de crack,
principalmente em populações marginalizadas e vulneráveis socialmente, o
fenômeno do uso dessa substância tem se destacado no cenário nacional,
percebido pelos serviços especializados e pela mídia leiga. Outros estudos
nacionais, apesar do rigor de sua metodologia, não obrigatoriamente representam
características dos habitantes do município de Fortaleza, ou mesmo da população
de usuários de crack, devido às próprias limitações desta metodologia em alcançar
esses sujeitos ocultos espacialmente. Este estudo buscou compreender, pela
análise de rede social, o perfil de usuários de crack em tratamento no município de
Fortaleza. Foi utilizada a triangulação métodos interpretativos, com uma tentativa de
intersecção de entre bases teóricas de diferentes correntes de pensamento como o
materialismo histórico, teoria do apego, teoria do aprendizado social, teoria
cognitiva, análise de redes e estatística. Esta metodologia avança ao compartilhar
uma visão holística e sistêmica da realidade e sua mutação permanente, nega a
independência dos atores e utiliza relações além de sujeito-sujeito, ganhando
complexidade, diversidade e adequabilidade. Os sujeitos pesquisados foram
compostos por homens e mulheres, com 16 anos completos ou mais, que residiam
em Fortaleza e que buscaram os serviços especializados em dependência química
deste município de janeiro a junho de 2015 para tratamento de uso de cocaína ou
crack. A rede social pessoal foi construída a partir das informações colhidas pelos
sujeitos da pesquisa. Foram investigados dados sociodemográficos dos egos, dos
alters, tipo de relação (amigo, familiar, etc), o grau de proximidade, a identificação de
quem havia usado álcool, cocaína ou crack, o suporte social pelo Questionário de
Suporte Social, SSQ6, o diagnóstioc de uso de substâncias pelo SCID-I, presença
do uso de outras substâncias, violência como vítima ou agressor, tipo de criação,
auto estima pela escala de Rosenberg, EER, e características estruturais das redes
como grau, densidade, hierarquia, grau de intermediação. Também foram utilizados
dados das entrevistas formativas e do diário de campo. Em consonância com os
dados da literatura, a maioria dos usuários de crack que procuram o sistema único
de saúde são homens, 86%; adultos jovens, média de idade 33,7 anos; solteiros,
37%, ou separado, 32%; com baixa escolaridade, 76% não completaram ensino
médio; baixa renda, 60% nos estratos D e E do Critério Brasil; e desempregados,
96%. Apresentam alta vulnerabilidade, com 20% em situação de rua. Apresentam
uma taxa extremamente elevada de uso de outras substâncias em comparação com
a população geral, com mais de 60% tendo usado maconha e cocaína no último mês
e mais de 80% usado álcool e cigarro. O uso regular destas substancias parece ser
estratégia para redução do consumo do uso de crack, com drogas mais ansiolíticas
e/ou de maiores tempo de ação. O preço da unidade pedra foi referido por 96% dos
entrevistados ser R$ 5,00. Este preço se mantém a pelo menos 8 anos,
evidenciando o fracasso das ações de redução de demanda. A curva de prevalência
do uso de crack parece estar em declínio, ou se deslocando para direita em relação
à idade, diferente do que ocorre com a cocaína. Em Fortaleza praticamente inexiste
grandes cenas públicas de consumo, divulgadas nas mídias como “cracolândia”. Os
locais de uso são em sua maioria a própria casa, 60%, ou um “barraco”, 54%.
Usuários são mais vítimas de agressão do que são agressores. Existe uma história
de violência frequente na infância, seja verbal, 42%, seja física, 60%, e uma baixa
chance de ser protagonista de violência no último ano, com 28% referindo pelo
menos um episódio de agressão, sendo outros usuários a maioria das vítimas.
Autoestima e suporte social são categorias que dividem determinantes semelhantes
e se estruturam em redes de sentido formadas na infância. A autoestima é menor
em mulheres, em quem tem baixa renda, em quem está em situação de rua, e
naqueles que não apresentam tipo de criação participativo. Tem correlação com o
suporte social, com a presença dos pais na rede social, com o grau e a densidade
da rede social. O uso de substâncias ocorre de forma escalonada e o crack é o
degrau após a cocaína. O uso crack não é o mesmo que uso pesado de cocaína.
São fenômenos sociais diversos e não podem ser agrupados em mesma análise. As
regressões multivariadas, comparando o desfecho uso de crack e o desfecho uso
diário, mostraram determinações incongruentes. O principal determinante da
migração ao uso de crack é a negligência/perda/abandono de suporte na infância.
Quando ajustado para vários determinantes que divergiam entre os grupos de
usuários de cocaína e crack em análises bivariadas, os usuários de crack possuem
maior idade e padrão de uso mais pesado, com maior freqüência de uso, maior
número de sintomas e maior uso de múltiplas substancias. A baixa escolaridade, o
tipo de criação negligente e o falecimento de pelo menos um dos pais, por suas
características de historicidade, são determinantes causais para a migração ao uso
de crack. Concluindo, a ausência dos pais e a escolaridade são fatores importantes
para a migração do uso de cocaína ao crack. A implementação de ações e políticas
que modifiquem estes fenômenos podem resultar em redução da prevalência do uso
desta droga.
Palavras-chave: Epidemiologia. Epidemiologia Crítica. Uso de crack. Análise de
rede social. Suporte social.